Nada mudou. Nada está perdido. Os motivos que nos fizeram entrar na luta há três, quatro, cinco décadas atrás continuam os mesmos.
Por Mauri Cruz (*)
A primeira questão é respeitarmos a democracia. Sim, é preciso afirmar com toda a clareza que o mais importante é a defesa da democracia. Essa mesma, frágil, imperfeita e que ainda tem uma influência enorme do poder econômico, dos meios de comunicação corporativos e, agora, também dos aplicados controlados pelo mercado. Mas foi essa democracia imperfeita que elegeu, por quatro vezes seguidas as candidaturas do PT. Não parece correto desrespeitar a opinião da maioria do povo brasileiro. Não tem sentido falar em ilegitimidade. As eleições possuem inúmeras limitações, mas tem sido a forma da sociedade brasileira buscar saídas para seus problemas. Não podemos defende-la somente quando os resultado nos convém.
Por isso, a vitória de Jair Bolsonaro não foi golpe. Foi uma eleição que poderíamos ter vencido. Onde 47 milhões de pessoas acolheram nossas ideias. No entanto, 57 milhões escolheram outro caminho, por motivos que conhecemos. Contra a corrupção, contra a violência, contra a política tradicional, na esperança da superação da crise política e econômica.
Há sim um grande risco de que, com a vitória desta candidatura que não tem apreço aos valores democráticos e humanitários, o novo governo rompa com a institucionalidade democrática. Mas isso tem que ser por obra e iniciativa deste novo governo e não do campo da sociedade civil e dos partidos de esquerda. Nossa postura não deve alimentar o endurecimento das ações do estado e de suas instituições. Não devemos ser nós os propagadores do clima de instabilidade, de terror, medo e de insegurança. É preciso buscar que as instituições públicas funcionem dentro da lógica democrática. Mesmo sabendo que isso possa não acontecer.
Neste sentido, a campanha do segundo turno das eleições presidenciais foi uma vitória muito importante porque demarcamos os temas centrais de defesa dos direitos civis, políticos e sociais que estão em jogo neste novo governo. Com a campanha Haddad/Manuela foi possível constituir um amplo espectro democrático e de defesa dos valores da diversidade, do respeito as diferenças e das liberdades. Criou-se as bases de uma frente ampla que deverá ser um espaço de resistência democrática fundamental. Cuidar para que esta frágil unidade não se esfacele é de importância vital.
É preciso ter em conta, também, que parte dos eleitores e eleitoras de Jair Bolsonaro mantiveram seu apoio por não acreditarem que seus pronunciamentos contra mulheres, negras e negros, opositores políticos, a favor cultura do estupro, dentre outros, eram sinceros. Neste sentido, o resultado eleitoral não foi um cheque em branco para que o novo governo pratique qualquer desrespeito aos direitos civis, políticos e sociais do povo brasileiro. Caso assim haja, irá perder rapidamente o apoio destes setores.
Dito isso, me parece que neste momento é preciso deixar que o novo governo mostre sua cara real. Foi eleita uma ideia. A ideia de que com a derrota dos partidos de esquerda tudo irá melhorar. Mas, como sabemos, isso não dá conta dos desafios colocados. O novo governo terá que ter respostas rápidas para as crises econômica, social e ambiental. Terá que se relacionar com uma oposição que representa mais de 60% da sociedade, somados os que apoiaram Haddad/Manuela aos que se abstiveram, votaram nulo ou em branco.
Enquanto isso, é preciso se reconectar com a base da sociedade brasileira. Não foram poucos os beneficiários das políticas sociais dos governos Lula e Dilma e que aderiram ao projeto da extrema direita. E isso embora pareça ilógico, na visão destas pessoas que estão sem esperança de encontrar emprego, de pagar as prestações dos bens adquiridos, de voltar a estudar, de ter maior renda, tem todo sentido. Com Temer, parte da sociedade ainda se sentia no governo do PT.
Por isso, é preciso se reconectar com a base da sociedade com a capacidade da escuta. Não do discurso pronto. Neste segundo turno, com a eminência da vitória do candidato do PSL, muitos de nós fomos para os bairros em mutirões e com simpatia e respeito fomos recebidos nas casas simples de pessoas que, com argumentos questionavam de como a crise chegou a este ponto, nos perguntando qual o papel que os partidos de esquerda tiveram na construção deste cenário tão negativo. E nem nós tínhamos as respostas. Para nós o golpe de 2016 foi causa. Para muitas destas pessoas, foi consequência. Para enfrentar este sentimento é preciso entender o que está acontecendo, qual a lógica do raciocínio. De nada vai adiantar ficarmos com raiva destas pessoas.
Dito isso, me parece que temos três tarefas estratégicas. Defender a democracia e os direitos humanos como valores universais inegociáveis, pelos quais iremos até as últimas consequências. E, nos voltarmos de forma coletiva e articulada para a base da sociedade brasileira nos reconectando com as lutas concretas por trabalho, educação, saúde, assistência, moradia, mobilidade, cultura e lazer. É preciso ainda, abrir espaço para que as novas gerações de militantes se sintam protagonistas da construção das alternativas. É preciso repensar as formas de organização, de estruturação das dinâmicas de poder interno nos movimentos e nos partidos de esquerda. Não é possível que nas horas de enfrentamento direto tenhamos tanta gente junto e quando são tomadas as decisões estratégicas se reúnam poucos iluminados em salas fechadas para decidir o futuro que irá impactar a todas e todos. É preciso compreender a necessidade de uma dinâmica radicalmente democrática e participativa no campo democrático e popular, onde cada uma e cada um tenha poder de voz e de voto. Sem mediações nem controles de mandatos e de caciques.
Nada mudou. Nada está perdido. Os motivos que nos fizeram entrar na luta há três, quatro, cinco décadas atrás continuam os mesmos. O poder econômico continua nas mãos de quem sempre esteve. As contradições do sistema capitalista seguem sendo as mesmas e suas consequências estão cada vez mais agudas. A luta pela democracia, pela liberdade, pela igualdade ainda são as molas que nos movem. Não há porque desesperar ou perder a esperança.
(*) Advogado sócio-ambiental, especialista em direitos humanos, professor de pós graduação em direito a cidade, mobilidade urbana, gestão de organizações da sociedade civil. Membro do Conselho Diretor da Abong e do Conselho Internacional do FSM.