Conheça o G20

Caderno para entender o G20

O “Caderno para entender o G20” é resultado da parceria do BRICS Policy Center (BPC) com a rede Jubileu Sul. A partir deste Caderno, produzido coletivamente com organizações e redes da sociedade civil, como a ABONG, a Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (REBRIP), Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), entre outras, buscamos facilitar seu percurso no universo complexo do G20 desde sua criação, passando pela ampliação da sua agenda e estrutura até o momento atual, quando o G20 se encontra sob a presidência rotativa do Brasil.

Para Henrique Frota, presidente do C20 e diretor da Abong e do Instituto Pólis, o caderno agrega um elemento muito importante, que é lidar com a falta de informação na sociedade brasileira a respeito do que é o G20. “O que é essa cúpula, o que ela se propõe, quem faz parte dela, quais são as suas possibilidades e limitações? Existe muito pouca informação traduzida em uma linguagem acessível a esse respeito e que consiga alcançar uma quantidade ampla da população brasileira. Evidentemente que na sociedade civil existem especialistas que já atuam no G20, já tem uma excelente compreensão do que é esse espaço, entretanto queremos ampliar e democratizar ainda mais esse entendimento, para mais pessoas, para mais organizações, para movimentos populares. O caderno, portanto, é um instrumento poderoso para isso, na medida em que se propõe a apresentar num linguagem que, ainda que respeitando a complexidade do tema, é mais acessível, um instrumento de leitura mais facilitada”, avalia.

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Caminhos para redução da violência letal contra jovens no Brasil

O Programa de Redução da Violência Letal Contra Adolescentes e Jovens (PRVL), desenvolvido pelo Observatório de Favelas, atuou em 16 regiões metropolitanas brasileiras a fim de ampliar o debate acerca da importância do tema na agenda pública.

Por Isabella Rodrigues | observatorio de favelas

A violência letal contra adolescentes e jovens atua como uma epidemia na sociedade brasileira. O Atlas da Violência 2021, mostrou que metade (51%) dos mais de 45 mil homicídios no Brasil em 2019 foram de adolescentes e jovens entre 15 e 29 anos, cerca de 23 mil jovens, uma média de 64 mortes por dia. Essa realidade pode ser compreendida pela interseção entre fatores como o racismo institucionalizado, desigualdades sociais e escassez de programas efetivos de prevenção que priorizem essa faixa etária.

Segundo a 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, policiais civis e militares mataram mais de 6 mil pessoas no Brasil em 2022, uma média de 17 pessoas por dia. Os dados mostram que a maioria das vítimas é negra (83%), tem entre 12 a 29 anos (76%), do sexo masculino (99%), e foi morta por arma de fogo (99%). Ainda segundo a publicação, o Amapá teve a maior taxa de letalidade policial no Brasil, seguido pela Bahia e Rio de Janeiro. Estes dois últimos concentraram 43% das mortes. As estatísticas evidenciam que jovens negros são os principais alvos da violência letal em um cenário onde o racismo e o abuso de violência policial ditam as dinâmicas de segurança pública, sobretudo nos territórios populares.

Operação policial do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) no Conjunto de favelas da Maré. Foto: Rosilene Miliotti

Há 22 anos o Observatório de Favelas dedica-se à produção de conhecimento e metodologias que tenham potencial para se constituir em políticas públicas. Desde sua fundação, atua no campo dos direitos humanos com foco nas formas de violência que atingem moradores de favelas e periferias. A partir do eixo de Direito à Vida e Segurança Pública, a instituição atua com o objetivo de contribuir para a formulação e implementação de políticas e ações públicas que tenham a valorização da vida como um princípio fundamental. Assim, o Observatório desenvolveu o Programa de Redução da Violência Letal Contra Adolescentes e Jovens  (PRVL), com foco na sensibilização, articulação política, desenvolvimento de mecanismos de monitoramento de índices de homicídios e metodologias de prevenção e redução da letalidade.

No ano de 2007, o Brasil testemunhava uma escalada de violência com índices crescentes de homicídios, além do aumento dos confrontos armados entre a polícia e facções criminosas, concentrando a violência letal nas periferias. Nesse cenário, em que as dinâmicas raciais, de gênero, etárias e territoriais ainda não eram priorizadas  nos índices, o Observatório de Favelas , em parceria com o UNICEF e o Laboratório de Análise da Violência (LAV-UERJ), iniciou um processo de articulação para produção de indicadores em 9 capitais brasileiras, pautando especialmente a letalidade de adolescentes e jovens.

Em 2008 a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República se juntou à iniciativa, o que possibilitou a ampliação do programa de 9 capitais para 16 regiões metropolitanas: Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Vitória, Recife, Salvador, Maceió, Belém, Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (RIDE-DF), Curitiba, Porto Alegre, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Manaus e Rio Branco.

Incidência em políticas públicas

Um dos eixos significativos do programa trata da produção de indicadores, que buscou dar visibilidade ao impacto da violência letal entre adolescentes e jovens no Brasil, de forma a pautar a questão como prioridade na agenda pública. A elaboração e atualização do “Índice de Homicídios na Adolescência (IHA)” para municípios com mais de 100 mil habitantes  entre os anos de 2005 e 2014 aparece como um componente central desse esforço.

A iniciativa propôs a produção de indicadores e mecanismos de monitoramento da violência letal capazes de auxiliar programas e projetos preventivos adaptados a cada localidade, além do desenvolvimento de ferramentas que permitam o monitoramento do Índice de Homicídios na Adolescência (IHA) diretamente nos municípios. O IHA estimou riscos de adolescentes entre 12 e 18 serem assassinados baseado no número de adolescentes e jovens brasileiros que tiveram homicídios como causa da morte. A pesquisa calculou o risco relativo com base em critérios de idade, gênero, raça e meio empregado; no caso, o uso de armas de fogo.

A última edição, o IHA 2014, calculou que para cada 1.000 adolescentes que completavam 12 anos no Brasil, 3,65 morriam vítimas de homicídio antes de chegar aos 19. O valor desta publicação foi o maior da série desde que começou a ser monitorada em 2005. Com isso, se as circunstâncias que prevaleciam em 2014 fossem mantidas, aproximadamente 43.000 adolescentes seriam vítimas de homicídio no Brasil entre 2015 e 2021, apenas nos municípios com mais de 100 mil habitantes. O estudo apontou ainda que a probabilidade de ser assassinado é quase três vezes maior para negros em comparação com brancos.

A diretora do Observatório de Favelas e Coordenadora Geral do PRVL, Raquel  Willadino, destaca que “o Índice de Homicídios na Adolescência foi criado para dar visibilidade ao impacto da violência letal contra adolescentes de forma sensibilizadora e mobilizadora. A divulgação dos dados sempre buscava impulsionar a mobilização de estratégias preventivas nos estados e municípios com foco na proteção da vida de adolescentes e jovens negros, moradores de territórios com altos índices de letalidade”

Segundo o cientista político André Rodrigues, que atuou como pesquisador no Programa, “o PRVL foi fundamental para pautar o debate sobre prevenção à violência contra adolescentes e jovens no Brasil, por uma perspectiva que considerasse as dimensões de gênero, raça e território”. André conta que o IHA foi uma métrica de referência e gerou impacto ao demonstrar que os riscos relativos entre jovens negros eram superiores aos de jovens brancos.

No eixo de articulação política, em âmbito nacional, o PRVL buscou priorizar o tema dos homicídios influenciando as políticas articuladas à Agenda Social Criança e Adolescente. Em 2009, o lançamento do IHA repercutiu na mobilização dos municípios para construção de uma agenda preventiva. Assim, o programa fomentou ações formativas com gestores públicos e organizações da sociedade civil, a fim de fortalecer e formular iniciativas de prevenção e redução da letalidade. Também desenvolveu uma planilha de cálculo do IHA para facilitar o monitoramento dos índices de homicídio na adolescência e na juventude, e dessa forma, ajudar gestores a planejar, implementar, monitorar e avaliar políticas públicas relacionadas à violência letal em seus territórios, considerando fatores como gênero, raça e o uso de armas de fogo.

O campo das metodologias de intervenção teve como foco o levantamento de políticas locais voltadas para a prevenção da violência e redução dos homicídios em curso nas regiões de abrangência do PRVL. A partir disso, a iniciativa mapeou programas e projetos preventivos, desenvolvidos por secretarias estaduais e municipais, através de trabalhos de campo em 11 regiões, entre 2009 e 2010, com um pesquisador e estagiário de cada região. A pesquisa destacou a falta de iniciativas preventivas para reduzir os homicídios entre jovens, e a pouca atenção para gênero, raça e território. No período em que foi realizado o levantamento, apenas 8,4% dos 160 programas mapeados consideravam critérios raciais para definição do público prioritário.

Publicações realizadas pelo Programa de Redução da Violência Letal Contra Adolescentes e Jovens (PRVL). Foto: Thaís Valencio

Willadino, destaca que “a divulgação dos dados do IHA e dos resultados deste levantamento, que apresentava um panorama nacional das políticas preventivas em curso, fomentaram diálogos com gestores federais, estaduais e municipais apontando a necessidade de construção de políticas mais focalizadas na redução da letalidade violenta.”

Para fortalecer a atuação dos municípios na construção de políticas de redução da letalidade, o PRVL desenvolveu o “Guia Municipal de Prevenção da Violência Letal contra Adolescentes e Jovens“, com o objetivo de oferecer caminhos metodológicos para cada município elaborar sua política preventiva dentro das particularidades de cada local.

Segundo Raquel, “a partir do lançamento do Guia Municipal do PRVL foram realizadas diversas oficinas formativas para gestores públicos e organizações da sociedade civil de municípios com altos índices de homicídios de adolescentes e jovens negros no Brasil. O Guia apresenta diretrizes metodológicas para a elaboração de diagnósticos locais e a construção de planos municipais de prevenção de homicídios, priorizando a participação de adolescentes e jovens. Os processos formativos realizados em diversos municípios brasileiros e a difusão da metodologia proposta pelo guia foram ferramentas fundamentais para sensibilizar gestores locais para a criação de estratégias preventivas”.

O PRVL também realizou oficinas com adolescentes e jovens, criando espaços de escuta e construção coletiva que mobilizaram jovens atuantes em territórios populares e moradores de locais com alto índice de letalidade. Na época, o engajamento da juventude no tema da prevenção se destacou por meio das diversas linguagens culturais, ao passo que além de sensibilizar outros jovens para a questão, criaram-se novas representações de favelas e periferias, apresentando suas potencialidades e rompendo com os estigmas de violência. Mas, esses jovens indicaram a desconexão entre políticas públicas em seus municípios e suas necessidades, reivindicando maior participação nos espaços de formulação e controle dessas políticas.

“O tema da prevenção à violência letal contra adolescentes e jovens demanda produção qualificada de conhecimento, rompendo com lógicas reativas e repressivas, completamente ineficazes e que, infelizmente, seguem orientando as políticas de segurança pública Brasil afora”, pontua Rodrigues, que na sua perspectiva diz acreditar na metodologia do PRVL como um modelo a ser adotado nos esforços preventivos, incluindo a articulação entre governos, sociedade civil e universidades.

Ao operar em uma escala supralocal, os diagnósticos do PRVL foram cruciais para entender a dinâmica da violência letal em municípios com altos índices de letalidade da juventude negra. Esses diagnósticos não só aprofundaram essa compreensão, mas também se tornaram ferramentas importantes para analisar e fomentar  políticas públicas e práticas sociais na superação desse problema.

Para o cientista político, o Programa deixou, como um de seus legados, a constituição de um amplo conjunto de agentes públicos municipais, que foram sensibilizados e capacitados a partir de parâmetros para a construção de políticas locais de prevenção. “Se há, hoje, no Brasil, uma preocupação com a vitimização de adolescentes por violência letal, o PRVL teve muita participação na visibilidade dessa agenda”, completa o pesquisador.

O Programa trouxe uma grande contribuição ao ressaltar que políticas públicas com foco na redução da letalidade de adolescentes e jovens devem abordar as dimensões de raça, gênero, território e violência armada, para uma estratégia eficaz. As bases do PRVL continuam a influenciar discussões atuais, indicando direções para abordagens amplas e sensíveis diante da violência letal contra adolescentes e jovens negros moradores de favelas e periferias no Brasil.

Adolescentes e jovens negros moradores de territórios populares são as principais vítimas da violência letal. Foto: Alexandre Silva

Juventude negra viva

Não atoa jovens negros residentes de favelas e periferias são as principais vítimas de homicídios há décadas. O racismo estrutural reflete na atuação de agentes de segurança pública durante os confrontos armados nesses territórios. A violência perpetua um ciclo de marginalização e injustiça que abala a sociedade como um todo, atuando como ferramenta para manter as desigualdades. Famílias destroçadas, comunidades traumatizadas e uma geração perdida são alguns dos resultados desse projeto político.

Segundo o levantamento Futuro Exterminado, do Instituto Fogo Cruzado, nos últimos sete anos, 601 crianças e adolescentes foram baleados na região metropolitana do Rio de Janeiro, com 267 vítimas fatais. Dentre elas, 286 foram atingidas durante operações policiais, representando quase metade do total. Os números evidenciam a urgência de medidas para proteger a juventude, além de analisar a ação de agentes de segurança pública em territórios populares, onde a maioria dos jovens são atingidos.

Em agosto, o adolescente Thiago Flausino, 13 anos, morreu baleado na Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio. Na versão da polícia, os agentes alegaram ter trocado tiros com o adolescente e que, no local, encontraram uma pistola, mas, imagens obtidas pela família do garoto contestam a informação e após investigação, os policiais envolvidos foram indiciados por fraude processual por conta da tentativa de incriminar o jovem ao incluir uma arma de fogo na cena do crime.

O Conselho Estadual De Defesa Da Criança E Do Adolescente (CEDCA/RJ), em nota pública, reafirmou o compromisso com a defesa dos direitos de crianças e adolescentes, e ainda listou medidas a serem tomadas diante da recorrente violação do direito à vida desse público: convocar uma Assembleia Extraordinária com representantes de órgãos governamentais e da sociedade civil, além de expedir ofícios solicitando informações e providências sobre o homicídio de Thiago.

Marcha Nacional Contra o Genocídio Negro. Rocinha, Rio de Janeiro, Brasil. Foto: veri-vg

Em 2020, o ministro Edson Fachin sancionou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, a ADPF das Favelas, que proibiu a realização de operações policiais nas favelas durante a pandemia do coronavírus salvo em casos excepcionais. A ação estabeleceu restrições para as ações policiais, incluindo o uso de helicópteros, veículos blindados e drones somente após justificativas, além da realização de operações nas favelas apenas em casos urgentes, após notificação prévia ao Ministério Público.

O STF ainda determinou a apresentação de um plano de redução da letalidade policial e, em junho deste ano, reafirmou a obrigação do uso de câmeras nos batalhões especiais. Contudo, o governo estadual descumpriu as diretrizes da ADPF e realizou operações policiais neste intervalo de tempo, sendo algumas grandes chacinas: em 2021 no Jacarezinho e em 2022 as no Complexo da Penha e no Complexo do Alemão, três das chacinas mais letais da história do estado.

No movimento de reduzir a violência letal e as vulnerabilidades sociais que afetam a juventude negra, o Ministério de Igualdade Racial (MIR) deu início ao Plano Juventude Negra Viva, em março deste ano. A iniciativa vem realizando encontros e escutas com movimentos sociais e lideranças por todo o Brasil a partir de caravanas participativas, que visam promover a participação social junto à sociedade civil e aos poderes públicos locais relacionados à pauta de juventude e igualdade racial, para então, estruturar o Plano.

Em entrevista ao Observatório de Favelas, o Diretor de Combate e Superação do Racismo do MIR, Yuri Silva, contou sobre a iniciativa: “Nossa estratégia também é fazer com que as políticas voltadas para a juventude negra, no sentido de combater as desigualdades e as vulnerabilidades, sejam políticas focalizadas onde está o foco do problema. O problema da letalidade não é um problema só de segurança pública, ele é um problema também de segurança pública, mas é causado pela evasão escolar, pela falta de acesso à saúde, pela falta de assistência social, pelo baixo acesso de incentivo à prática de esporte e o fomento a cultura produzida por esse jovens, então é preciso resolver a equação completa” , diz Yuri. “É um problema que é holístico e a solução precisa ser igualmente holística, igualmente multisetorial”.

Caravana Juventude Negra Viva no Conjunto de Favelas da Maré. Créditos: Reprodução

Além da prevenção, a proposta tem entre suas metas promoção da igualdade racial, segurança pública, acesso à justiça, empregabilidade, entre outros direitos fundamentais. Questionado sobre a abordagem do Plano em relação a segurança pública, Yuri destacou que a pauta não é a única responsável pelas vulnerabilidades e pela violência letal contra a juventude negra, mas é a principal, então uma das demandas do projeto é promover o acesso à justiça, criando mecanismos para que a juventude seja protegida pelo Estado e de forma ampla pela sociedade.

 

O diretor esclarece que oferecer acesso à justiça trata de permitir que a juventude tenha acesso às defensorias públicas e à investigação dos casos de violência. Assim, o plano objetiva prevenir e garantir o acesso dos jovens à justiça, no sentido de investigar, punir e dar finalização aos casos. Ainda, existe a discussão sobre o controle da atividade policial na segurança pública, que perpassa pelo investimento em uso de câmeras nos uniformes, assim como pelo controle da transferência de recursos, principalmente nos estados.

“Investindo em projetos de formação das corporações policiais, em especial da corporação policial militar, em direitos humanos, em igualdade racial, para que a gente tenha uma nova mentalidade dentro das corporações, voltada à proteção, à defesa dos direitos humanos, à defesa dos direitos individuais e coletivos, e não de opressão e violação deles. Pela primeira vez na história, a pauta de redução da violência letal contra a juventude negra está institucionalizada no instrumento de planejamento orçamentário do governo”, finaliza Yuri.

Pouco a pouco, estratégias de valorização da vida ganham força na agenda pública. A compreensão de que a juventude desempenha um papel importante como agente transformador, junto a políticas públicas eficazes são formas de fortalecer iniciativas que garantam o direito à vida, sobretudo para adolescentes e jovens, principais vítimas da letalidade. Para mudar essa realidade também é necessário investir na capacidade produtiva dos jovens, proporcionando educação e oportunidades econômicas, assim será possível pavimentar caminhos para um futuro onde os altos índices de violência letal fiquem nas estatísticas do passado.

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O cinema-sentipensamento das mulheres indígenas

Recém-lançada, a Rede Katahirine – ‘constelação’ de realizadoras – articulará espaços políticos. “O cinema indígena é uma armadilha de caçar: no caso, nós somos a caça”, explica coordenadora, mostrando como telas se tornam campos de luta.

Realizadoras indígenas. Foto obtida na página do Instituto Catitu

PorSophia Pinheiro, entrevistada porMaurício Ayer

“Ver não apenas com os olhos, mas com todo o corpo e sentimento, ver com os olhos dos pássaros, da capivara, da onça, ver como veem fungos, plantas, divindades; fazer as imagens de outro modo, em colaboração com as pessoas e outros agentes do mundo visível e invisível, encantando as imagens e o pensamento, criando teias de afeto e sonhos.” Assim Sophia Pinheiro descreve o modo como essas mulheres dão luz aos seus olhares em um cinema que certamente terá agora um espaço próprio para se pensar e conquistar espaço político e cultural na sociedade brasileira.

Juntamente com Mari Corrêa e Helena Corezomaé, Sophia coordena daRede Katahirine, lançada no último sábado em evento virtual (como noticiou Outras Palavras), congregando 76 mulheres indígenas cineastas. A rede foi concebida pelo Instituto Catitu, dirigido por Mari, como resultado de muitos anos de trabalho em oficinas de audiovisual com mulheres originárias, e se materializou com a articulação das coordenadoras, conselheiras e outras dezenas de realizadoras.

Nesta entrevista com Sophia, conhecemos como essa rede se formou e o que ela pretende. “Antes de querer ser cinema, os filmes indígenas no Brasil são sobretudo sociopolíticos, ações comunitárias de reconhecimento, comunicação interna, enfrentamento diante do mundo não indígena e trocas de saberes, conectados ao pensamento, primeiro, político e, partindo daí, estético”, explica. Esse modo de fazer filmes tem ressonância nos próprios objetivos da Rede. Conforme escreveu o Conselho:

Acreditamos que a rede poderá ser uma importante ferramenta de conhecimento e diálogo entre nós e com o público, e também uma referência para pesquisas sobre o cinema indígena feminino. Nosso trabalho aborda questões centrais dos nossos povos, como a recuperação das memórias históricas, a reafirmação das identidades étnicas, a valorização dos conhecimentos tradicionais, das línguas e do papel das mulheres nas nossas sociedades.

No evento de lançamento, no dia 29 de abril de 2023, que você pode assistir abaixo, estiveram presentes, além das coordenadoras Sophia, Mari e Helena e outras membras da equipe Natali Mamani e Vicky Mouawad, as cineastas e integrantes do Conselho, Graciela Guarani, Olinda Yawar Tupinambá (Mediação) e Vanuzia Pataxó, e as convidadas Beka Munduruku e Francy Baniwa.

Leia a entrevista, realizada por email.

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Outras Palavras – A Rede Katahirine de mulheres indígenas cineastas foi lançada no último sábado, dia 29/04. Como foi gestada a ideia da rede e quais são as primeiras ações que ela deve pôr em prática?

Sophia Pinheiro –A Rede surgiu da confluência entre o Instituto Catitu, organização que atua junto aos povos indígenas para o fortalecimento do protagonismo das mulheres por meio do uso de novas tecnologias, e a minha pesquisa de doutorado pelo PPGCine-UFF. ​​Com o mapeamento que fiz na minha tese de doutorado com coletivos, associações, realizadoras e realizadores, para conhecer o trabalho de novas cineastas indígenas, Mari Corrêa [diretora do Catitu] me convidou para fazer parte da equipe de elaboração de uma rede de mulheres indígenas cineastas. O Instituto Catitu já estava com a proposta de criação da Katahirine – Rede Audiovisual das Mulheres Indígenas, então percebemos que minha pesquisa de doutorado conversava diretamente com este projeto. Dessa forma, demos início à articulação da Rede com minha entrada na coordenação, ao lado de Mari e Helena Corezomaé, e com as outras mulheres que a compõem no Conselho.

A criação da Katahirine – Rede Audiovisual das Mulheres Indígenas vem afirmar a importância de construir uma rede política de encontros, diálogos, pesquisa e reflete a urgência de repensarmos a maneira como reproduzimos nossa educação colonial como sociedade. O racismo e o machismo estruturais no Brasil afetam nossas vidas e, apesar de serem muitas mulheres originárias que representam suas cosmovisões por meio da linguagem audiovisual, é pouco o reconhecimento que elas têm e, portanto, ínfima a valorização do seus trabalhos. Na pesquisa de doutorado, busco historicizar o cinema indígena feminino brasileiro a partir de filmes de mulheres diretoras e que também ocupam outras funções, dos anos 2000 (primeira data de que se tem conhecimento de uma direção feminina indígena) até o presente. Esse processo se deu sem colocar os filmes que elas fazem em relação ao cinema não indígena, para que ele não seja a régua do que estão produzindo – visto que suas construções dizem respeito às comunidades e a elas mesmas em relação às comunidades e suas subjetividades. Futuramente planejamos promover encontros entre as realizadoras de todo o país e organizar mostras, atuar no desenvolvimento de estratégias de fortalecimento do audiovisual indígena e na proposição de políticas públicas que atendam a produção do cinema feito pelas mulheres indígenas.

Como vocês descreveriam a especificidade do trabalho das mulheres indígenas no audiovisual? É possível identificar características que distinguem essas cineastas e seu trabalho?

Desejando superar a classificação, as categorias e sair das cercas criadas pela colonização, onde o próprio sistema define “quem a gente é e quem a gente não é” – como me disse Graciela Guarani –, os filmes realizados por mulheres indígenas “se alinham a questões relacionadas à condição feminina e ao que se chama de contracinema, que seria uma resposta feminista ao cinema tradicional”, citando Karla Holanda. Mudar e transformar pela via da percepção – por meio das cosmovisões que estão antes dos filmes, nesses filmes que acontecem junto com a vida. Essa foi a grande questão da minha tese. As imagens e os filmes das mulheres indígenas perturbam e reencantam o cinema, alargando nosso modo ver, pensar e fazer, sentindo, pensando e agindo, em um chamamento para ver com outros olhos – aquele olhar da manhã, a primeira abertura dos olhos depois de uma noite sonhando.

Ver não apenas com os olhos, mas com todo o corpo e sentimento, ver com os olhos dos pássaros, da capivara, da onça, ver como veem fungos, plantas, divindades; fazer as imagens de outro modo, em colaboração com as pessoas e outros agentes do mundo visível e invisível, encantando as imagens e o pensamento, criando teias de afeto e sonhos. Movimentando as imagens junto com a vida, porque acontecem com a vida. Esses são os cernes dosentipensamentoque as mulheres originárias nos inspiram. Considero que há uma outra perspectiva do cinema e da arte indígena contemporâneos, com ênfase ao sentipensar no seio das filosofias ameríndias: uma ciência artesanal que se tece por meio da paixão, da respiração, daquilo que compartimos em coletivo; comprometida com a vida, porque se reconhece como parte dela. O sentipensamento é uma articulação que traz o envolvimento de outras partes do corpo para a sabedoria, aspecto que alinha cabeça, coração, mãos, pés, pulmão, entranhas… E perturba o sentido racional, binário e masculino do pensamento. Uma forma de realização cinematográfica que permite fazer-com, gestar-com com outros seres: fungos, plantas, bichos e humanos. São produções que servem aos interesses das mulheres indígenas, sem pensar em circuitos de festivais ou exibição externa às aldeias.

Mesmo para quem conhece um pouco da produção indígena no audiovisual, é impressionante que essa rede seja lançada com a participação de 76 mulheres cineastas de 32 etnias. Toda essa força evidentemente não surge de uma hora para a outra, é o resultado de décadas de trabalho. Você pode contar rapidamente como se formou essa comunidade do audiovisual de mulheres indígenas?

No Brasil, a formação dessa comunidade é realizada sobretudo por Instituições não indígenas e mais recentemente outros projetos e ONGs. Especificamente a formação de mulheres cineastas é conduzida sobretudo pelo Instituto Catitu. Algumas das cineastas aprenderam a filmar sozinhas ou pelo contato com comunicadoras(es) indígenas, mas o papel das oficinas audiovisuais indígenas, realizadas pelo Instituto Catitu, é importantíssimo para essa consolidação.

Como a rede se distribui territorialmente hoje? Há maior concentração de membras em algumas regiões?

Da Rede participam mulheres de todos os biomas, de diferentes regiões e povos, temos 32 etnias e até agora, 75 mulheres cineasta indígenas mapeadas. Algumas não conseguimos contato ainda, então fazem parte da Rede e constam no site 57. Temos a seguinte distribuição das mulheres por bioma: 15 da Amazônia; 7 da Caatinga; 16 do Cerrado; 18 da Mata Atlântica; 1 do Pampa. Infelizmente não temos nenhuma mulher do Pantanal, mas estamos articulando como resolver isso. Uma das potências da Rede é justamente diagnosticar onde precisamos atuar mais em formações audiovisuais, como por exemplo Caatinga e Pampa, para que essas atuações sejam ao menos mais próximas e não invisibilizem nenhum bioma ou mulher.

Nos últimos anos, tem sido notável a presença indígena em espaços importantes, não do “mercado” cultural, mas do “sistema da cultura”, como em exposições, mostras, livros, cursos, etc. Para citar apenas um exemplo, a 34ª Bienal de São Paulo teve a participação de inúmeros/as artistas indígenas, e um notável trabalho de curadoria de Jaider Esbell. Esta Rede surge também como parte desse momento/movimento de ocupação de espaços? Que tipo de espaços a Katahirine pretende ocupar?

Acredito que sim. Como falamos, a Rede é resultado de um longo processo e de alianças de trabalho e afetivas entre indígenas e não indígenas. A Rede quer ocupar um lugar político, principalmente. Antes de querer ser cinema, os filmes indígenas no Brasil são sobretudo sociopolíticos, ações comunitárias de reconhecimento, comunicação interna, enfrentamento diante do mundo não indígena e trocas de saberes, conectados ao pensamento, primeiro, político e, partindo daí, estético e possuem “como objetivo não o filme em si mas o que ele provoca em termos de reflexão e desencadeia nesse processo”, como escreveram Nadja Marin e Paula Morgado. O cinema indígena é, então, uma armadilha de caçar. No caso, nós somos a caça. Quem vai ao cinema, esperando assistir a algo “de índio”, depara-se com filmes da terra – e nós entramos na terra e na luta por ela, enquanto somos capturadas como espectadoras –; vemos algo construído a partir de uma estratégia comunal, de uma aldeia como proposição filosófica de vida e de se fazer uns nos outros, agindo mutuamente e se complementando em seus contrastes e coisas não duras – mas moles, pois se moldam, a partir da experiência vivida.

Já no seu lançamento, a rede Katahirine declara ter o desejo de incluir cineastas de povos de outros países da América Latina. Já há conversas nesse sentido?

Vamos estruturar e debater mais nacionalmente por enquanto, mas a ideia é expandir a rede por toda América Latina em breve. A Natali Mamani, indígena Aymara e imigrante, faz parte da equipe da Rede e do Catitu e é nossa primeira participante boliviana e brasileira.

Por: https://outraspalavras.net/poeticas/o-cinema-sentipensamento-das-mulheres-indigenas/

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O cinema-sentipensamento das mulheres indígenas

Recém-lançada, a Rede Katahirine – ‘constelação’ de realizadoras – articulará espaços políticos. “O cinema indígena é uma armadilha de caçar: no caso, nós somos a caça”, explica coordenadora, mostrando como telas se tornam campos de luta

OUTRASPALAVRAS

Publicado 05/05/2023

 


Realizadoras indígenas. Foto obtida na página do Instituto Catitu

 

Por Sophia Pinheiro, entrevistada por Maurício Ayer

“Ver não apenas com os olhos, mas com todo o corpo e sentimento, ver com os olhos dos pássaros, da capivara, da onça, ver como veem fungos, plantas, divindades; fazer as imagens de outro modo, em colaboração com as pessoas e outros agentes do mundo visível e invisível, encantando as imagens e o pensamento, criando teias de afeto e sonhos.” Assim Sophia Pinheiro descreve o modo como essas mulheres dão luz aos seus olhares em um cinema que certamente terá agora um espaço próprio para se pensar e conquistar espaço político e cultural na sociedade brasileira.

Juntamente com Mari Corrêa e Helena Corezomaé, Sophia coordena da Rede Katahirine, lançada no último sábado em evento virtual (como noticiou Outras Palavras), congregando 76 mulheres indígenas cineastas. A rede foi concebida pelo Instituto Catitu, dirigido por Mari, como resultado de muitos anos de trabalho em oficinas de audiovisual com mulheres originárias, e se materializou com a articulação das coordenadoras, conselheiras e outras dezenas de realizadoras.

Acreditamos que a rede poderá ser uma importante ferramenta de conhecimento e diálogo entre nós e com o público, e também uma referência para pesquisas sobre o cinema indígena feminino. Nosso trabalho aborda questões centrais dos nossos povos, como a recuperação das memórias históricas, a reafirmação das identidades étnicas, a valorização dos conhecimentos tradicionais, das línguas e do papel das mulheres nas nossas sociedades.

No evento de lançamento, no dia 29 de abril de 2023, que você pode assistir abaixo, estiveram presentes, além das coordenadoras Sophia, Mari e Helena e outras membras da equipe Natali Mamani e Vicky Mouawad, as cineastas e integrantes do Conselho, Graciela Guarani, Olinda Yawar Tupinambá (Mediação) e Vanuzia Pataxó, e as convidadas Beka Munduruku e Francy Baniwa.

 

Leia a entrevista, realizada por email.

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Outras Palavras – A Rede Katahirine de mulheres indígenas cineastas foi lançada no último sábado, dia 29/04. Como foi gestada a ideia da rede e quais são as primeiras ações que ela deve pôr em prática?

Sophia Pinheiro – A Rede surgiu da confluência entre o Instituto Catitu, organização que atua junto aos povos indígenas para o fortalecimento do protagonismo das mulheres por meio do uso de novas tecnologias, e a minha pesquisa de doutorado pelo PPGCine-UFF. ​​Com o mapeamento que fiz na minha tese de doutorado com coletivos, associações, realizadoras e realizadores, para conhecer o trabalho de novas cineastas indígenas, Mari Corrêa [diretora do Catitu] me convidou para fazer parte da equipe de elaboração de uma rede de mulheres indígenas cineastas. O Instituto Catitu já estava com a proposta de criação da Katahirine – Rede Audiovisual das Mulheres Indígenas, então percebemos que minha pesquisa de doutorado conversava diretamente com este projeto. Dessa forma, demos início à articulação da Rede com minha entrada na coordenação, ao lado de Mari e Helena Corezomaé, e com as outras mulheres que a compõem no Conselho.

A criação da Katahirine – Rede Audiovisual das Mulheres Indígenas vem afirmar a importância de construir uma rede política de encontros, diálogos, pesquisa e reflete a urgência de repensarmos a maneira como reproduzimos nossa educação colonial como sociedade. O racismo e o machismo estruturais no Brasil afetam nossas vidas e, apesar de serem muitas mulheres originárias que representam suas cosmovisões por meio da linguagem audiovisual, é pouco o reconhecimento que elas têm e, portanto, ínfima a valorização do seus trabalhos. Na pesquisa de doutorado, busco historicizar o cinema indígena feminino brasileiro a partir de filmes de mulheres diretoras e que também ocupam outras funções, dos anos 2000 (primeira data de que se tem conhecimento de uma direção feminina indígena) até o presente. Esse processo se deu sem colocar os filmes que elas fazem em relação ao cinema não indígena, para que ele não seja a régua do que estão produzindo – visto que suas construções dizem respeito às comunidades e a elas mesmas em relação às comunidades e suas subjetividades. Futuramente planejamos promover encontros entre as realizadoras de todo o país e organizar mostras, atuar no desenvolvimento de estratégias de fortalecimento do audiovisual indígena e na proposição de políticas públicas que atendam a produção do cinema feito pelas mulheres indígenas.

Como vocês descreveriam a especificidade do trabalho das mulheres indígenas no audiovisual? É possível identificar características que distinguem essas cineastas e seu trabalho?

Desejando superar a classificação, as categorias e sair das cercas criadas pela colonização, onde o próprio sistema define “quem a gente é e quem a gente não é” – como me disse Graciela Guarani –, os filmes realizados por mulheres indígenas “se alinham a questões relacionadas à condição feminina e ao que se chama de contracinema, que seria uma resposta feminista ao cinema tradicional”, citando Karla Holanda. Mudar e transformar pela via da percepção – por meio das cosmovisões que estão antes dos filmes, nesses filmes que acontecem junto com a vida. Essa foi a grande questão da minha tese. As imagens e os filmes das mulheres indígenas perturbam e reencantam o cinema, alargando nosso modo ver, pensar e fazer, sentindo, pensando e agindo, em um chamamento para ver com outros olhos – aquele olhar da manhã, a primeira abertura dos olhos depois de uma noite sonhando.

Ver não apenas com os olhos, mas com todo o corpo e sentimento, ver com os olhos dos pássaros, da capivara, da onça, ver como veem fungos, plantas, divindades; fazer as imagens de outro modo, em colaboração com as pessoas e outros agentes do mundo visível e invisível, encantando as imagens e o pensamento, criando teias de afeto e sonhos. Movimentando as imagens junto com a vida, porque acontecem com a vida. Esses são os cernes do sentipensamento que as mulheres originárias nos inspiram. Considero que há uma outra perspectiva do cinema e da arte indígena contemporâneos, com ênfase ao sentipensar no seio das filosofias ameríndias: uma ciência artesanal que se tece por meio da paixão, da respiração, daquilo que compartimos em coletivo; comprometida com a vida, porque se reconhece como parte dela. O sentipensamento é uma articulação que traz o envolvimento de outras partes do corpo para a sabedoria, aspecto que alinha cabeça, coração, mãos, pés, pulmão, entranhas… E perturba o sentido racional, binário e masculino do pensamento. Uma forma de realização cinematográfica que permite fazer-com, gestar-com com outros seres: fungos, plantas, bichos e humanos. São produções que servem aos interesses das mulheres indígenas, sem pensar em circuitos de festivais ou exibição externa às aldeias.

Mesmo para quem conhece um pouco da produção indígena no audiovisual, é impressionante que essa rede seja lançada com a participação de 76 mulheres cineastas de 32 etnias. Toda essa força evidentemente não surge de uma hora para a outra, é o resultado de décadas de trabalho. Você pode contar rapidamente como se formou essa comunidade do audiovisual de mulheres indígenas?

No Brasil, a formação dessa comunidade é realizada sobretudo por Instituições não indígenas e mais recentemente outros projetos e ONGs. Especificamente a formação de mulheres cineastas é conduzida sobretudo pelo Instituto Catitu. Algumas das cineastas aprenderam a filmar sozinhas ou pelo contato com comunicadoras(es) indígenas, mas o papel das oficinas audiovisuais indígenas, realizadas pelo Instituto Catitu, é importantíssimo para essa consolidação.

Como a rede se distribui territorialmente hoje? Há maior concentração de membras em algumas regiões?

Da Rede participam mulheres de todos os biomas, de diferentes regiões e povos, temos 32 etnias e até agora, 75 mulheres cineasta indígenas mapeadas. Algumas não conseguimos contato ainda, então fazem parte da Rede e constam no site 57. Temos a seguinte distribuição das mulheres por bioma: 15 da Amazônia; 7 da Caatinga; 16 do Cerrado; 18 da Mata Atlântica; 1 do Pampa. Infelizmente não temos nenhuma mulher do Pantanal, mas estamos articulando como resolver isso. Uma das potências da Rede é justamente diagnosticar onde precisamos atuar mais em formações audiovisuais, como por exemplo Caatinga e Pampa, para que essas atuações sejam ao menos mais próximas e não invisibilizem nenhum bioma ou mulher.

Nos últimos anos, tem sido notável a presença indígena em espaços importantes, não do “mercado” cultural, mas do “sistema da cultura”, como em exposições, mostras, livros, cursos, etc. Para citar apenas um exemplo, a 34ª Bienal de São Paulo teve a participação de inúmeros/as artistas indígenas, e um notável trabalho de curadoria de Jaider Esbell. Esta Rede surge também como parte desse momento/movimento de ocupação de espaços? Que tipo de espaços a Katahirine pretende ocupar?

Acredito que sim. Como falamos, a Rede é resultado de um longo processo e de alianças de trabalho e afetivas entre indígenas e não indígenas. A Rede quer ocupar um lugar político, principalmente. Antes de querer ser cinema, os filmes indígenas no Brasil são sobretudo sociopolíticos, ações comunitárias de reconhecimento, comunicação interna, enfrentamento diante do mundo não indígena e trocas de saberes, conectados ao pensamento, primeiro, político e, partindo daí, estético e possuem “como objetivo não o filme em si mas o que ele provoca em termos de reflexão e desencadeia nesse processo”, como escreveram Nadja Marin e Paula Morgado. O cinema indígena é, então, uma armadilha de caçar. No caso, nós somos a caça. Quem vai ao cinema, esperando assistir a algo “de índio”, depara-se com filmes da terra – e nós entramos na terra e na luta por ela, enquanto somos capturadas como espectadoras –; vemos algo construído a partir de uma estratégia comunal, de uma aldeia como proposição filosófica de vida e de se fazer uns nos outros, agindo mutuamente e se complementando em seus contrastes e coisas não duras – mas moles, pois se moldam, a partir da experiência vivida.

Já no seu lançamento, a rede Katahirine declara ter o desejo de incluir cineastas de povos de outros países da América Latina. Já há conversas nesse sentido?

Vamos estruturar e debater mais nacionalmente por enquanto, mas a ideia é expandir a rede por toda América Latina em breve. A Natali Mamani, indígena Aymara e imigrante, faz parte da equipe da Rede e do Catitu e é nossa primeira participante boliviana e brasileira.

 

fonte: https://outraspalavras.net/poeticas/o-cinema-sentipensamento-das-mulheres-indigenas/

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“COSTURANDO MODA COM DIREITOS” DENUNCIA APAGAMENTO DAS COSTUREIRAS DOMICILIARES NO BRASIL

Por: FASE

Acessado em: 07/02/2023

A pesquisa entrevistou 87 costureiras do Ceará em 2022 e tem conclusões preocupantes

*Paula Schitine e Júlia Motta

A publicação, resultado do projeto “Costurando Moda com Direitos”, é uma iniciativa da FASE através do Fundo SAAP e das unidades regionais de Pernambuco e Rio de Janeiro. O documento faz uma análise das condições de trabalho das costureiras artesanais do Ceará. Durante os meses de janeiro e fevereiro de 2022, 87 artesãs da Região Metropolitana de Fortaleza e dos municípios de Crateús e Viçosa do Ceará, foram ouvidas pela pesquisa que teve o apoio da Laudes Foundation. Para costurar a pesquisa com o cotidiano, a publicação também mostra relatos da história de vida de quatro dessas trabalhadoras: Ariadne Sousa, Dona Vilanir, Lucivalda Paixão e Rosenira Souza.

De acordo com a pesquisa, apesar do debate parecer fora de época, já que cada vez mais as grandes marcas de roupas tomam conta do cenário, ainda são elas, as costureiras, que produzem o que vestimos. Como exposto na publicação, o que aconteceu foi o apagamento dessas mulheres, que vivem em condições cada vez mais precárias devido às dinâmicas capitalistas do modelo de negócio fast-fashion.

A publicação expõe o atual cenário da indústria da moda e traça o histórico da precarização do trabalho nesse setor, através de dados e de histórias de costureiras que passaram pela experiência da fábrica e do trabalho autônomo. Essa moda, que produz novas roupas, muitas vezes, em até 15 dias e por um preço mais baixo, existe porque se sustenta na exploração dessas costureiras, que se debruçam em suas máquinas de costura por mais de 12 horas por dia, com apenas duas folgas por mês e salários muito abaixo do que é necessário para uma vida digna. Segundo a pesquisa “77% das costureiras informaram que recebem por mês até um salário mínimo, e dentre essas, 26,6% recebem até um quarto de salário mínimo.”

Costureiras recebem kit com bolsa e exemplar da pesquisa.

Taciana Gouveia, coordenadora do Fundo SAAP e editora da publicação, afirma que a escolha das cidades foco da pesquisa teve a ver com a importância da  indústria têxtil e como se utiliza dessa mão de obra. A publicação foi lançada em dezembro num evento presencial em Fortaleza com a presença de algumas das mulheres retratadas. “A ideia de lançar a pesquisa no Ceará foi dar visibilidade ao tema. Tivemos a presença de mandatos e movimentos sociais e esse é o primeiro passo na luta para que sejam criados projetos de lei que possam beneficiar essas trabalhadoras”, explica.

Racismo e Desigualdade

A publicação ainda mostra a dimensão da desigualdade racial dentro do contexto de precariedade e vulnerabilidade socioeconômica. Quase metade das costureiras pretas entrevistadas, cerca de 46% informaram que a renda mensal familiar não ultrapassa um salário mínimo.

Outra questão que a pesquisadora destaca é a invisibilização dessas costureiras domiciliares para a conquista de direitos e melhores condições de vida porque seus contratos são feitos, muitas vezes através da palavra. Segundo a pesquisa, 78% das costureiras afirmam que suas encomendas, preços e prazos, são feitas na conversa sem qualquer tipo de contrato ou recibo. “Se para as empregadas domésticas, que lutaram por anos foi difícil comprovar um vínculo empregatício e conquistar direitos, imagina para essas mulheres que trabalham em casa por contratos que são muitas vezes de boca? Então, é uma realidade bem predatória e complicada”, ressalta Taciana.

Ariadne Sousa, uma das costureiras retratadas no relatório, já trabalhou em fábrica e hoje é autônoma, produzindo bolsas com tecidos africanos da Guiné-Bissau e do Senegal. Como muitas trabalhadoras artesanais autônomos, ela também sente a desvalorização do seu trabalho em relação ao preço que cobra. Ela conta que os custos que para produzir as peças, contabilizando o preço dos tecidos e a mão de obra, são considerados por ela, mas não pelo cliente, que sempre tenta baratear o preço final. “O caminho para que as pessoas valorizem o artesanato é o apoio financeiro para que se possa ter um maior escoamento das peças”, afirma.

Seja trabalhadora de uma empresa ou dona do seu próprio negócio, o trabalho de costureira não é fácil. Ganhar pouco e trabalhar muito, ter seu produto desmerecido e precisar estar sempre se reinventando para se manter no mercado, afeta a vida dessas mulheres. Por isso, Ariadne defende que “é preciso políticas públicas que deem atenção à saúde física e mental das costureiras”, alerta.

Luta e conscientização

Exigir melhorias nas condições de trabalho é mais uma das lutas que as artesãs enfrentam, por isso é preciso uma grande rede de apoio. “O Fundo SAAP me possibilita ter mais conhecimentos, me ajuda a conseguir novas possibilidades de trabalho e a lutar por garantia de direitos”, diz Ariadne.

Taciana Gouveia evidencia que o objetivo deste trabalho é mobilizar essas mulheres e fortalecer os grupos para que possam lutar para a construção de uma nova realidade. Ela também chama a atenção para a reflexão e mudança de consciência necessárias para o consumo da moda. “Nossos corpos são apertados e limitados não apenas pela imposição de ideias irreais, mas também por causa da exploração do trabalho e desvalorização das capacidades das costureiras. Mas nós acreditamos que é possível inventar outras tramas, tecer direitos para as costureiras”, afirma.

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*Paula Schitine é jornalista e Júlia Motta, estagiária da comunicação da FASE.

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