Recém-lançada, a Rede Katahirine – ‘constelação’ de realizadoras – articulará espaços políticos. “O cinema indígena é uma armadilha de caçar: no caso, nós somos a caça”, explica coordenadora, mostrando como telas se tornam campos de luta
Publicado 05/05/2023
Realizadoras indígenas. Foto obtida na página do Instituto Catitu
Por Sophia Pinheiro, entrevistada por Maurício Ayer
“Ver não apenas com os olhos, mas com todo o corpo e sentimento, ver com os olhos dos pássaros, da capivara, da onça, ver como veem fungos, plantas, divindades; fazer as imagens de outro modo, em colaboração com as pessoas e outros agentes do mundo visível e invisível, encantando as imagens e o pensamento, criando teias de afeto e sonhos.” Assim Sophia Pinheiro descreve o modo como essas mulheres dão luz aos seus olhares em um cinema que certamente terá agora um espaço próprio para se pensar e conquistar espaço político e cultural na sociedade brasileira.
Juntamente com Mari Corrêa e Helena Corezomaé, Sophia coordena da Rede Katahirine, lançada no último sábado em evento virtual (como noticiou Outras Palavras), congregando 76 mulheres indígenas cineastas. A rede foi concebida pelo Instituto Catitu, dirigido por Mari, como resultado de muitos anos de trabalho em oficinas de audiovisual com mulheres originárias, e se materializou com a articulação das coordenadoras, conselheiras e outras dezenas de realizadoras.
Acreditamos que a rede poderá ser uma importante ferramenta de conhecimento e diálogo entre nós e com o público, e também uma referência para pesquisas sobre o cinema indígena feminino. Nosso trabalho aborda questões centrais dos nossos povos, como a recuperação das memórias históricas, a reafirmação das identidades étnicas, a valorização dos conhecimentos tradicionais, das línguas e do papel das mulheres nas nossas sociedades.
No evento de lançamento, no dia 29 de abril de 2023, que você pode assistir abaixo, estiveram presentes, além das coordenadoras Sophia, Mari e Helena e outras membras da equipe Natali Mamani e Vicky Mouawad, as cineastas e integrantes do Conselho, Graciela Guarani, Olinda Yawar Tupinambá (Mediação) e Vanuzia Pataxó, e as convidadas Beka Munduruku e Francy Baniwa.
Leia a entrevista, realizada por email.
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Outras Palavras – A Rede Katahirine de mulheres indígenas cineastas foi lançada no último sábado, dia 29/04. Como foi gestada a ideia da rede e quais são as primeiras ações que ela deve pôr em prática?
Sophia Pinheiro – A Rede surgiu da confluência entre o Instituto Catitu, organização que atua junto aos povos indígenas para o fortalecimento do protagonismo das mulheres por meio do uso de novas tecnologias, e a minha pesquisa de doutorado pelo PPGCine-UFF. Com o mapeamento que fiz na minha tese de doutorado com coletivos, associações, realizadoras e realizadores, para conhecer o trabalho de novas cineastas indígenas, Mari Corrêa [diretora do Catitu] me convidou para fazer parte da equipe de elaboração de uma rede de mulheres indígenas cineastas. O Instituto Catitu já estava com a proposta de criação da Katahirine – Rede Audiovisual das Mulheres Indígenas, então percebemos que minha pesquisa de doutorado conversava diretamente com este projeto. Dessa forma, demos início à articulação da Rede com minha entrada na coordenação, ao lado de Mari e Helena Corezomaé, e com as outras mulheres que a compõem no Conselho.
A criação da Katahirine – Rede Audiovisual das Mulheres Indígenas vem afirmar a importância de construir uma rede política de encontros, diálogos, pesquisa e reflete a urgência de repensarmos a maneira como reproduzimos nossa educação colonial como sociedade. O racismo e o machismo estruturais no Brasil afetam nossas vidas e, apesar de serem muitas mulheres originárias que representam suas cosmovisões por meio da linguagem audiovisual, é pouco o reconhecimento que elas têm e, portanto, ínfima a valorização do seus trabalhos. Na pesquisa de doutorado, busco historicizar o cinema indígena feminino brasileiro a partir de filmes de mulheres diretoras e que também ocupam outras funções, dos anos 2000 (primeira data de que se tem conhecimento de uma direção feminina indígena) até o presente. Esse processo se deu sem colocar os filmes que elas fazem em relação ao cinema não indígena, para que ele não seja a régua do que estão produzindo – visto que suas construções dizem respeito às comunidades e a elas mesmas em relação às comunidades e suas subjetividades. Futuramente planejamos promover encontros entre as realizadoras de todo o país e organizar mostras, atuar no desenvolvimento de estratégias de fortalecimento do audiovisual indígena e na proposição de políticas públicas que atendam a produção do cinema feito pelas mulheres indígenas.
Como vocês descreveriam a especificidade do trabalho das mulheres indígenas no audiovisual? É possível identificar características que distinguem essas cineastas e seu trabalho?
Desejando superar a classificação, as categorias e sair das cercas criadas pela colonização, onde o próprio sistema define “quem a gente é e quem a gente não é” – como me disse Graciela Guarani –, os filmes realizados por mulheres indígenas “se alinham a questões relacionadas à condição feminina e ao que se chama de contracinema, que seria uma resposta feminista ao cinema tradicional”, citando Karla Holanda. Mudar e transformar pela via da percepção – por meio das cosmovisões que estão antes dos filmes, nesses filmes que acontecem junto com a vida. Essa foi a grande questão da minha tese. As imagens e os filmes das mulheres indígenas perturbam e reencantam o cinema, alargando nosso modo ver, pensar e fazer, sentindo, pensando e agindo, em um chamamento para ver com outros olhos – aquele olhar da manhã, a primeira abertura dos olhos depois de uma noite sonhando.
Ver não apenas com os olhos, mas com todo o corpo e sentimento, ver com os olhos dos pássaros, da capivara, da onça, ver como veem fungos, plantas, divindades; fazer as imagens de outro modo, em colaboração com as pessoas e outros agentes do mundo visível e invisível, encantando as imagens e o pensamento, criando teias de afeto e sonhos. Movimentando as imagens junto com a vida, porque acontecem com a vida. Esses são os cernes do sentipensamento que as mulheres originárias nos inspiram. Considero que há uma outra perspectiva do cinema e da arte indígena contemporâneos, com ênfase ao sentipensar no seio das filosofias ameríndias: uma ciência artesanal que se tece por meio da paixão, da respiração, daquilo que compartimos em coletivo; comprometida com a vida, porque se reconhece como parte dela. O sentipensamento é uma articulação que traz o envolvimento de outras partes do corpo para a sabedoria, aspecto que alinha cabeça, coração, mãos, pés, pulmão, entranhas… E perturba o sentido racional, binário e masculino do pensamento. Uma forma de realização cinematográfica que permite fazer-com, gestar-com com outros seres: fungos, plantas, bichos e humanos. São produções que servem aos interesses das mulheres indígenas, sem pensar em circuitos de festivais ou exibição externa às aldeias.
Mesmo para quem conhece um pouco da produção indígena no audiovisual, é impressionante que essa rede seja lançada com a participação de 76 mulheres cineastas de 32 etnias. Toda essa força evidentemente não surge de uma hora para a outra, é o resultado de décadas de trabalho. Você pode contar rapidamente como se formou essa comunidade do audiovisual de mulheres indígenas?
No Brasil, a formação dessa comunidade é realizada sobretudo por Instituições não indígenas e mais recentemente outros projetos e ONGs. Especificamente a formação de mulheres cineastas é conduzida sobretudo pelo Instituto Catitu. Algumas das cineastas aprenderam a filmar sozinhas ou pelo contato com comunicadoras(es) indígenas, mas o papel das oficinas audiovisuais indígenas, realizadas pelo Instituto Catitu, é importantíssimo para essa consolidação.
Como a rede se distribui territorialmente hoje? Há maior concentração de membras em algumas regiões?
Da Rede participam mulheres de todos os biomas, de diferentes regiões e povos, temos 32 etnias e até agora, 75 mulheres cineasta indígenas mapeadas. Algumas não conseguimos contato ainda, então fazem parte da Rede e constam no site 57. Temos a seguinte distribuição das mulheres por bioma: 15 da Amazônia; 7 da Caatinga; 16 do Cerrado; 18 da Mata Atlântica; 1 do Pampa. Infelizmente não temos nenhuma mulher do Pantanal, mas estamos articulando como resolver isso. Uma das potências da Rede é justamente diagnosticar onde precisamos atuar mais em formações audiovisuais, como por exemplo Caatinga e Pampa, para que essas atuações sejam ao menos mais próximas e não invisibilizem nenhum bioma ou mulher.
Nos últimos anos, tem sido notável a presença indígena em espaços importantes, não do “mercado” cultural, mas do “sistema da cultura”, como em exposições, mostras, livros, cursos, etc. Para citar apenas um exemplo, a 34ª Bienal de São Paulo teve a participação de inúmeros/as artistas indígenas, e um notável trabalho de curadoria de Jaider Esbell. Esta Rede surge também como parte desse momento/movimento de ocupação de espaços? Que tipo de espaços a Katahirine pretende ocupar?
Acredito que sim. Como falamos, a Rede é resultado de um longo processo e de alianças de trabalho e afetivas entre indígenas e não indígenas. A Rede quer ocupar um lugar político, principalmente. Antes de querer ser cinema, os filmes indígenas no Brasil são sobretudo sociopolíticos, ações comunitárias de reconhecimento, comunicação interna, enfrentamento diante do mundo não indígena e trocas de saberes, conectados ao pensamento, primeiro, político e, partindo daí, estético e possuem “como objetivo não o filme em si mas o que ele provoca em termos de reflexão e desencadeia nesse processo”, como escreveram Nadja Marin e Paula Morgado. O cinema indígena é, então, uma armadilha de caçar. No caso, nós somos a caça. Quem vai ao cinema, esperando assistir a algo “de índio”, depara-se com filmes da terra – e nós entramos na terra e na luta por ela, enquanto somos capturadas como espectadoras –; vemos algo construído a partir de uma estratégia comunal, de uma aldeia como proposição filosófica de vida e de se fazer uns nos outros, agindo mutuamente e se complementando em seus contrastes e coisas não duras – mas moles, pois se moldam, a partir da experiência vivida.
Já no seu lançamento, a rede Katahirine declara ter o desejo de incluir cineastas de povos de outros países da América Latina. Já há conversas nesse sentido?
Vamos estruturar e debater mais nacionalmente por enquanto, mas a ideia é expandir a rede por toda América Latina em breve. A Natali Mamani, indígena Aymara e imigrante, faz parte da equipe da Rede e do Catitu e é nossa primeira participante boliviana e brasileira.
fonte: https://outraspalavras.net/poeticas/o-cinema-sentipensamento-das-mulheres-indigenas/
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