Governos de Miami, Santiago e Freetown criam novos postos para enfrentar efeitos do aquecimento global. Ideia é mitigar impactos em setores de saúde, energia e obras

 

Mulher com roupas pretas, segurando uma sacola, segura com a outra mão um pano azul em torno da cabeça. O dia está ensolarado.
FOTO: LOUIZA VRADI/REUTERS – 1º.JUL.2021

Com a intensificação das mudanças climáticas, prefeituras de cidades como Miami, nos Estados Unidos, Santiago, no Chile, e Freetown, em Serra Leoa, criaram um novo cargo no governo municipal: o chamado “chief heat officer”, ou secretário de Calor, cujo trabalho é enfrentar os efeitos do aumento das temperaturas no ambiente urbano.

Financiados por duas iniciativas internacionais do terceiro setor, esses secretários lidam com um problema cada vez mais frequente. Ondas de calor afetam grupos vulneráveis nas cidades e têm impactos em setores como os de saúde, energia, construção e hídrico.

O Nexo explica o que são as Secretarias de Calor, como elas foram criadas em algumas cidades e quais são suas vantagens e limitações. Mostra também qual o estágio desse tipo de discussão no Brasil e que outras medidas prefeitura podem adotar para enfrentar o problema.

O que são as secretarias

Segundo texto da Extreme Heat Resilience Alliance (Aliança pela Resiliência ao Calor Extremo) e a fundação Arsht-Rock, organizações internacionais que impulsionaram a criação das Secretarias de Calor, a ideia é que esse tipo de órgão unifique políticas municipais contra o problema do calor extremo.

Esse trabalho inclui aumentar a conscientização dentro do poder público sobre os riscos das ondas de calor, identificar as comunidades e os bairros mais vulneráveis ao aumento das temperaturas e coordenar projetos de redução de risco de calor no longo prazo, entre outras medidas.

Homem está curvado sobre muro baixo, colocando tijolos. Atrás dele, no canteiro de obras, há mulheres e outros homens.
FOTO: ADNAN ABIDI/REUTERS – 02.MAI.2022

Seis cidades criaram o cargo de secretária de Calor — até agora, há apenas mulheres — desde a criação da iniciativa, em 2021: Miami, Santiago, Freetown, Melbourne (na Austrália), Monterrey (no México) e Atenas (na Grécia). Em 2022, a então secretária de Atenas, Eleni Myrivili, deixou o cargo para assumir o posto de Global Chief Heat Officer no ONU Habitat (Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos).

Entrevistada em 2022, quando ainda estava em Atenas, pelo jornal Folha de S.Paulo, Myrivili disse que, no cargo, trabalhou em projetos para redesenhar áreas verdes na cidade, treinou pessoas para ajudar grupos mais vulneráveis ao aumento das temperaturas e reuniu cientistas para classificar e dar melhores respostas às ondas de calor.

Eugenia Kargbo, secretária de Calor de Freetown, listou ao jornal americano The New York Times outras atribuições do cargo. Entre as medidas que seu escritório adotou, está a construção de coberturas em mercados ao ar livre para proteger vendedores expostos ao sol, por exemplo. Kargbo também planeja pôr telhados brancos (que refletem o calor, em vez de absorvê-lo) nos prédios da cidade e substituir lixões ilegais por espaços verdes.

Homem em pé ao lado de tenda de acampamento em frente ao mar
FOTO: CHAD HIPOLITO/REUTERS – 28.JUN.2021

Segundo a Arsht-Rock e a Extreme Heat Resilience Alliance, os secretários de Calor são nomeados pelas autoridades do município. Depois disso, as organizações passam a apoiá-los com recursos e conhecimento para implementar políticas públicas.

O que motivou a criação do cargo

Esses cargos foram criados depois que cidades como Atenas, Freetown e Melbourne aumentaram a preocupação com os efeitos das ondas de calor e do aumento generalizado das temperaturas médias no contexto da mudança climática.

Ondas de calor são períodos de alguns dias que registram temperaturas máximas superiores à média comum para a época. Segundo relatório de 2021 do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU), com a mudança do clima esse fenômeno tende a ser mais intenso e frequente.

Relatório divulgado pela Organização Mundial Meteorológica em novembro mostrou que o período de 2015 a 2022 pode ter sido o mais quente da história. Projeções mostram que mais de 3,5 bilhões de pessoas vão ser afetadas por ondas de calor até 2050, metade delas nas cidades.

Calor_Paris
FOTO: PHILIPPE WOJAZER/REUTERS – 05.06.2015

Segundo Henrique Frota, coordenador-executivo do Instituto Pólis, esse cenário pode ter diversos impactos no ambiente urbano. Além de intensificar as chamadas ilhas de calor (fenômeno de áreas urbanas causado pela densidade de construções e poluição), o aumento das temperaturas pode deteriorar construções — como os edifícios e as ruas asfaltadas, que podem rachar — e sobrecarregar o sistema de saúde:

“Ondas intensas de calor provocam danos à saúde, como desidratação, e afetam principalmente faixas etárias mais vulneráveis, como crianças e idosos. Outra camada bastante vulnerável é a população de rua, que não tem acesso a abrigos com conforto térmico” Henrique Frota, coordenador-executivo do Instituto Pólis, em entrevista ao Nexo

“Quanto maior a onda de calor, também é maior o consumo de energia para refrigeração de ambientes e até mesmo de alimentos”, disse. “Esse consumo impacta todo o sistema: há mais demanda por energia, a tarifa pode aumentar, e também pode crescer a demanda por construção de novas termelétricas e hidrelétricas, que têm impacto ambiental.”

Outra consequência desse cenário aparece no setor hídrico. Quanto maior o calor, maior também é o consumo doméstico de água, segundo Frota. Esse consumo, por sua vez, pode sobrecarregar os reservatórios que abastecem as cidades.

Quais as vantagens e limitações do cargo

Para as organizações que apoiam a criação de Secretarias de Calor, esse cargo resolve uma limitação de governos municipais do mundo todo: a falta de uma resposta unificada aos problemas causados pelo aumento das temperaturas. Segundo elas, embora muitas cidades tenham departamentos que possam elaborar políticas para a área (como secretarias de Meio Ambiente, Saúde e Obras), seus esforços ainda são dispersos.

Frota disse ao Nexo que criar uma secretaria voltada só ao calor pode ser interessante em casos como o de Atenas, já que a Grécia é um país vulnerável a incêndios florestais causados pelo aumento das temperaturas. Apesar disso, ele diz que não vê a mesma necessidade em países como o Brasil.

Pessoas dormem em tatames no chão em albergue
FOTO: MARANIE STAAB/REUTERS – 27.JUN.2021

“Estamos falando de um tema [o calor] necessariamente interdisciplinar e intersetorial”, disse ao Nexo. Para ele, a distribuição das políticas públicas em diferentes secretarias é um ganho, não um obstáculo para enfrentar o problema, como sugerem as organizações que defendem a criação de uma secretaria própria.

Frota também afirmou que órgãos voltados ao calor têm a limitação de não parecerem tratar da causa do problema do calor extremo, que é a mudança climática. “[Essa secretaria] cuida de uma consequência particular, específica. Mas, quando falamos de mudança climática, não falamos apenas de ondas de calor, mas de outros fenômenos”, disse.

Segundo esse raciocínio, criar uma secretaria de Mudança Climática poderia fazer mais sentido no contexto das cidades brasileiras. Frota também disse que o tema poderia inspirar a criação de planos municipais de adaptação à mudança do clima — com ou sem uma secretaria voltada para isso — e ser incorporado ao plano diretor:

“Como é uma lei de desenvolvimento urbano, que trata das construções, o plano diretor pode ajudar a resolver o problema das ilhas de calor, por exemplo. Esse não pode ser um tema só para a lei ambiental. Tem que ser incorporado às ferramentas que já existem do planejamento urbano” Henrique Frota, coordenador-executivo do Instituto Pólis, em entrevista ao Nexo

Qual o estágio do debate no Brasil

Frota disse não conhecer secretarias municipais brasileiras voltadas ao calor. Enquanto isso, pouquíssimas cidades têm uma Secretaria de Mudança Climática. Entre elas, estão Niterói (RJ) e São Paulo, que têm pastas do Clima separadas das de Meio Ambiente, e o Rio de Janeiro, que tem uma Secretaria de Ambiente e Clima.

Tainá de Paula, titular da pasta do Rio, disse ao Nexo que um dos principais objetivos da secretaria é criar uma agenda de adaptação aos extremos climáticos (como inundações) nas favelas e periferias. Quanto ao calor, ela diz querer criar um plano de descarbonização da economia da cidade, reduzindo as emissões de gases de efeito estufa locais e evitando que as temperaturas aumentem ainda mais.

Pessoas dormem espalhadas no chão, em uma área grande, debaixo de uma ponte. No primeiro plano, de costas, no centro da imagem, um homem caminha.
FOTO: ADNAN ABIDI /REUTERS – 02.MAI.2022

“No fim de semana [5 de fevereiro] o Rio bateu recorde — não só de calor, mas de sensação térmica”, afirmou. “Do ponto de vista prático, isso não é apenas um incômodo, mas altera as possibilidades de uso do espaço público. Realizar as atividades econômicas em determinados dias debaixo do sol é quase impossível.”

Segundo ela, descarbonizar a economia do Rio tem desafios como a dependência da cidade do setor de petróleo e gás, um dos que mais contribuem para a mudança climática. Apesar disso, ela disse ser possível reduzir emissões em áreas como a de resíduos sólidos — ou seja, manejando melhor o lixo na cidade — e de combate ao desmatamento no município.

Outro desafio é o diálogo com outros entes federativos. “A agenda climática tem que estar no debate nacional”, disse. “Precisa, sim, de articulação e construção local [de políticas públicas], mas também precisa haver corresponsabilidade entre os entes. É muito importante ter uma agenda [de combate à mudança do clima] metropolitana, ou também uma discussão sobre governança climática a nível nacional, para todas as cidades.”

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