A DEMOCRACIA QUE QUEREMOS 

Carta à Equipe de Transição do Governo Lula-Alckmin

Nós, organizações da sociedade civil, abaixo-assinadas, reunidas em Brasília, nos dias 10 e 11 de novembro de 2022, a fim de avaliar os desafios da incidência no Parlamento para os próximos quatro anos, apresentamos respeitosamente à Equipe de Transição do Governo Lula-Alckmin algumas considerações, preocupações e demandas urgentes, relativas ao período que antecede a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e os primeiros dias de exercício do seu mandato.

Somos organizações do campo popular democrático da esquerda, que atuamos em diversas agendas de defesa de direitos, tais como: socioambientais, territoriais, segurança alimentar e nutricional, educação, saúde, afirmação da diversidade religiosa e cultural, mulheres, população LGBTQIA+, juventudes, povo negro, mulheres negras, quilombolas, ribeirinhos, povos indígenas, sem terra, sem teto, pessoas com deficiência, população em situação de rua, comunidades pesqueiras, população do campo e da cidade.

Participamos ativamente da resistência ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, lutamos pela liberação do presidente Lula, mobilizamo-nos pela cassação do mandato de Bolsonaro e Mourão, e levamos à recente campanha eleitoral a energia de nossa diversidade, a coragem e a garra de nossa vida sofrida e cotidianamente violentada.

Nos últimos quatro anos, sobrevivemos para resistir e resistimos para existir. Denunciamos diariamente os crimes cometidos por Jair Bolsonaro e seus aliados. Também nos organizamos nos territórios, junto aos movimentos sociais, para acolher o povo abandonado pelo governo durante a pandemia da Covid-19. Foram tempos de terror e perversidade, pois sabemos – e a CPI da Covid comprovou – que os mais afetados pela gestão criminosa da pandemia foram as mulheres, os profissionais da saúde, as trabalhadoras domésticas, a população negra, os povos indígenas, as comunidades quilombolas, a população idosa, as pessoas em situação de rua, os trabalhadores e as trabalhadoras dos transportes coletivos e da limpeza. Criamos barreiras nos territórios tradicionais para evitar a chegada do vírus e atuamos em redes de solidariedade para garantir o acesso a máscaras, materiais de higiene, remédios e comida para a população vulnerabilizada. Trabalhamos na linha de frente pelo Auxílio Emergencial, realizamos atos inter-religiosos em memória das vítimas da Covid-19 e acolhemos a dor das famílias enlutadas.

Na campanha eleitoral de 2022, o povo negro, as juventudes, as mulheres – sobretudo as mulheres negras – e a população LGBTQIA+, das amplas periferias deste País, tiveram papel fundamental, seja porque se negaram a votar em Jair Bolsonaro, como demonstraram todas as pesquisas, seja porque conseguiram animar a consciência social com a esperança de um Brasil melhor. Enfrentamos a violência política com nossos corpos e a solidariedade de nossos movimentos. Verificamos, na luta, que é necessária e urgente a reforma do sistema político, visto que as alterações na legislação eleitoral têm sido realizadas para fortalecer ainda mais o poder oligárquico.

Fizemos a campanha e votamos na Frente Ampla (amplíssima) coordenada por Lula, pois sabíamos que seria a melhor opção para o Brasil. Sem menosprezar a conquista de algumas cadeiras a mais no Congresso e nas Assembleias, a representatividade de mulheres, pessoas negras, indígenas e nordestinas está muito aquém do que seria possível ser construído, mesmo na Equipe de Transição.

Na plenária que acabamos de realizar, construímos o consenso de que é preciso que o novo governo compreenda ser a defesa da democracia um projeto, não um dado objetivo alcançado após a eleição. Serão anos difíceis, e nós seremos a base de apoio desse projeto. Assim, consideramos que – em um governo de concertação – é fundamental demarcar o campo de negociações. Afinal, sempre que houve acordos com setores oligárquicos, financeiros e empresariais, com a direita e com setores fundamentalistas das igrejas, os interesses dos mais pobres, da população negra, das mulheres, da população LGBTQIA+, dos povos indígenas, das pessoas com deficiências e das classes trabalhadoras foram os primeiros a serem rifados e excluídos.

Lembramos que a retirada de direitos e a política de morte são a marca dos últimos anos. Agora basta! Queremos o compromisso do novo governo com os direitos humanos e com a restituição de nossos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. A Equipe de Transição, em nome do Presidente da República eleito, precisa dizer que irá cumprir e respeitar as leis brasileiras e os acordos internacionais que garantem direitos aos povos indígenas e às comunidades tradicionais, à população negra, às mulheres, às pessoas com deficiências, aos povos das florestas, às comunidades quilombolas e às de Terreiros, às pessoas LGBTQIA+, às trabalhadoras e aos trabalhadores. 

O caminho para a constituição do Estado laico e de respeito a todas as espiritualidades deve ser ampliado e percorrido sem privilégios nem exclusões. É preciso ter em mente que a baliza do Estado Democrático de Direito é a Constituição da República, não os textos das tradições religiosas.

Não há como construir o retorno à trajetória de enraizamento da democracia sem restituir as políticas públicas que garantam a participação social nos processos decisórios, incluindo os relacionados às finanças públicas. Por isso, impõe-se não só dar fim ao Teto de Gastos e rever as demais regras fiscais, como ainda revogar imediatamente todos os decretos e atos normativos infralegais que desvirtuam e limitam os direitos e a execução de políticas públicas democráticas. 

Ademais, urge responsabilizar todos aqueles que cometeram crimes contra a vida e a democracia nos anos recentes de necropolítica, particularmente os agentes públicos. Rejeitamos a ideia de anistia, não por vingança, mas por justiça. A experiência ainda candente de flerte com o fascismo nos indica que a retomada da construção da democracia no Brasil deve sepultar a velha tradição política de premiar os algozes, como aconteceu com os senhores de engenho quando da falsa abolição da escravidão e com os torturadores no fim da ditadura militar. Por isso, é fundamental que o novo governo se contraponha à tese da anistia para a gestão federal moribunda, zelando para que o sistema de justiça imprima celeridade ao julgamento dos responsáveis pelo genocídio durante a pandemia, respeitando-se os limites do estado democrático de direito. 

De modo idêntico, rechaçamos o uso do direito como arma de guerra, que persegue as pessoas impondo-lhes punição seletiva por conta da raça, do gênero, da situação de pobreza ou da filiação partidária. Impõe-se que o novo governo assuma, também, o compromisso de combater o encarceramento em massa e de adotar uma política de drogas mais consequente, pondo fim ao genocídio e à brutal criminalização que devasta as vidas das juventudes e das mulheres negras, periféricas e empobrecidas em todo o País.

Não aceitaremos nenhum passo atrás do que estava estabelecido em 2016. Precisamos desarmar a população e retomar o enfrentamento à violência contra as mulheres, protegendo especialmente as mulheres negras e a população LGBTQIA+, vítimas preferenciais dos crimes de feminicídio. Precisamos resgatar os direitos trabalhistas e previdenciários, bem como os meios de existência das entidades sindicais e populares. A juventude merece ter esperança no futuro, sem trabalho precarizado, sem a exaustão de empregos informais e com a garantia de previdência social digna e de educação de qualidade. Mulheres e homens precisam receber a mesma remuneração por igual trabalho. A saúde de todas, todes e todos deve ser garantida, por meio de medidas que incluam jornadas de trabalho decentes, investimentos no Sistema Único de Saúde e respeito aos direitos sexuais e reprodutivos.

A democracia que queremos é inclusiva, generosa, caracterizada pela justiça social e está alerta. Os compromissos que buscamos junto ao novo governo são a base para a construção dela e um aceno verdadeiro da chegada da primavera. 

Brasília, 29 de novembro de 2022.

  1. Ação Educativa
  2. Articulação de Jovens Negras Feministas (ANJF) 
  3. Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) 
  4. Articulação de Negras Jovens Feministas  
  5. Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA)
  6. Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil (AMDH)  
  7. Artigo 19 – Brasil e América do Sul
  8. Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) 
  9. Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT)
  10.  Associação Brasileira de ONGs (ABONG) 
  11. Associação Brasileira de Pós- -Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO)
  12. Associação Brasileira de Saúde Coletiva
  13. Associação do Núcleo de Apoio e Valorização à Vida de Travestis, Transexuais e Transgênero do Distrito Federal e Entorno (ANAVTrans)
  14. Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)
  15. Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento (ASSECOR)
  16. Campanha do Levante Feminista Contra o Feminicídio
  17. Campanha Nacional pelo Direito à Educação 
  18. Campanha Nem Presa Nem Morta (NPNM)
  19. Católicas pelo Direito de Decidir
  20. Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN)
  21. Centro de Documentação, Comunicação e Memória Afro Brasileira (IROHIN)
  22. Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA)
  23. Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (CENDHEC) – PE
  24. Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA)
  25. CLADEM Brasil (integrante do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres)
  26. Coalizão Direitos Valem Mais
  27. Coalização em Defesa da Democracia
  28. Coalizão Negra por Direitos
  29. Coletiva Mahin Organização de Mulheres Negras para os Direitos Humanos 
  30. Coletivo Transforma MP 
  31. Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP)
  32. Comissão de Justiça e Paz de Brasília
  33. Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa 
  34. Conselho Federal de Psicologia (CFP) 
  35. Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) 
  36. Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP)
  37. Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) 
  38. Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) 
  39. ELO Ligação e Organização 
  40. FIAN Brasil (integrante da Rede de Informação e Ação pelo Direito de Alimentar-se)
  41.  Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana 
  42. Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS) 
  43. Fórum Ecumênico Brasil 
  44. Frente de Mulheres do Distrito Federal e Entorno 
  45. Frente de Mulheres Negras do Distrito Federal  
  46. Frente Nacional pela Legalização do Aborto 
  47. Fundação Luterana de Diaconia – Conselho de Missão entre Povos Indígenas – Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (FLD-COMIN-CAPA) 
  48. Geledés Instituto da Mulher Negra 
  49. Grupo Curumim Gestação e Parto 
  50. Grupo de Mulheres Negras Mãe Andreza do Maranhão 
  51. Instituto Alziras 
  52. Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) 
  53. Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) 
  54. Instituto Mulheres da Amazônia (IMA) 
  55. Instituto Pólis 
  56. Instituto Socioambiental (ISA) 
  57. Instituto Universidade Popular (UNIPOP) 
  58. Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social 
  59. Koinonia Presença Ecumênica e Serviço 
  60. Marcha Mundial por Justiça Climática/Marcha Mundial do Clima
  61. Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia (MAMA) 
  62. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) 
  63. Movimento Negro Unificado (MNU) 
  64. N’ZINGA Coletivo de Mulheres Negras 
  65. Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) 
  66. Organização de Cultura e Comunicação Alternativa (OCCA) 
  67. Outras Palavras
  68. Oxfam Brasil (integrante do Comitê de Oxford para o Alívio da Fome) 
  69. Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político 
  70. Plataforma por um Novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Plataforma MROSC)
  71. Processo de Articulação e Diálogo entre Agências Ecumênicas Europeias e Parceiros Brasileiros (PAD) 
  72. Rede de Desenvolvimento Humano (REDEH) 
  73. Rede de Mulheres Negras de Pernambuco 
  74. Rede de Mulheres Negras Evangélicas 
  75. Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos 
  76. Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA) 
  77. Rede Nacional de Negras e Negros Lésbicas, Gays, Bissexuais Travestis e Transexuais (Rede Afro LGBT) 
  78. Rede Nacional de Religiões AfroBrasileiras e Saúde (RENAFRO) 
  79. Teia Nacional Legislativa em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana 
  80. Terra de Direitos 
  81. União Brasileira de Mulheres (UBM)