A Abong – Associação Brasileira de ONGs, encontra-se a realizar um périplo por vários países europeus, numa viagem que começou com uma paragem em Lisboa, nos dias 11 e 12 de setembro. Henrique Botelho Frota, Co-Diretor Executivo da Associação Brasileira de ONGs (ABONG) e Co-Diretor Executivo do Instituto Pólis, respondeu a algumas perguntas da Plataforma sobre os desafios da Sociedade Civil e a importância da cooperação no contexto atual. 

 

1) Depois de um período de muita turbulência interna marcado por retrocessos nos direitos conquistados ao longo de décadas, que desafios é que a Sociedade Civil brasileira identifica para os próximos anos? E quais as estratégias que a ABONG considera que podem ser adotadas para os ultrapassar, considerando a vossa experiência?

Passamos por anos muito difíceis no Brasil, com uma complexa articulação entre crise econômica, ascensão de forças conservadoras, aumento da violência política e da polarização, reformas ultra neoliberais e impactos da pandemia de COVID-19.

Desde 2016, vimos inúmeros retrocessos em termos de direitos, políticas sociais e ambientais. A estrutura do Estado Brasileiro a nível do Governo Nacional foi instrumentalizada por ideologias e interesses contrários ao interesse público e ao bem comum, com repercussões negativas também nas esferas locais de governo. As soluções propostas nesse período, como a reforma trabalhista e as medidas de austeridade fiscal, mostraram-se não apenas totalmente inefetivas, como pioraram as condições de vida da maior parte da nossa população. O retorno da fome e os altos índices de insegurança alimentar – 70,3 milhões de pessoas estão em insegurança alimentar atualmente –, além de outros índices sociais, é um dos indicadores de que o país retrocedeu a patamares anteriores a vinte anos.

Um dos nossos grandes desafios é restabelecer as políticas públicas para benefício do conjunto da população, especialmente as famílias mais pobres e vulneráveis. A ABONG tem insistido que a retomada precisa incorporar uma visão mais radical de superação das desigualdades a partir de um olhar interseccional que considere fatores como raça, gênero, orientação sexual, território, origem, dentre outros.

Também identificamos o fator de urgência advindo da crise climática, cujos impactos negativos irão operar dentro da sistemática de desigualdades e racismo que estruturam a sociedade brasileira. O grave desmonte das políticas ambientais ocorreu justamente nos anos de maior incidência de eventos climáticos extremos que vitimaram milhares de famílias no país.

Outro aspecto desafiador para a sociedade brasileira e muito caro para a ABONG é a defesa da democracia e da participação popular nas políticas públicas.  As forças conservadoras e autoritárias mostraram seu poder e capacidade de mobilizar atos golpistas e atentatórios contra as instituições democráticas. Temos visto, na sociedade brasileira, um aumento dos discursos de ódio e de práticas violentas contra ativistas ambientais e defensores de direitos humanos que não cessaram com a eleição de um novo governo. É necessário, portanto, construir novos pilares de um pacto democrático que seja efetivo para todas as pessoas e que tenha mecanismos fortes de superação das desigualdades.

Por fim, tem sido um tópico de preocupação da ABONG o estabelecimento de um ambiente mais hostil e criminalizador das organizações da sociedade civil e dos movimentos sociais, levando à interdição do espaço cívico. A própria existência das organizações, diante de problemas de sustentabilidade ou de perseguições políticas, está em risco. Diante disso, temos atuado para fortalecer o campo e dialogar com o conjunto da sociedade sobre a importâncias das organizações.

2) A ABONG encontra-se a realizar um périplo por vários países europeus, numa viagem que começou com uma paragem em Lisboa. O que esperam alcançar com esta iniciativa?

Acabamos de iniciar uma jornada por sete países europeus com duração de um mês, período em que teremos diversos momentos com organizações da sociedade civil que atuam na agenda do desenvolvimento e direitos humanos, com agências de cooperação internacional e fundações de apoio, com autoridades públicas e com a comunidade acadêmica.

Nossa viagem tem múltiplos objetivos, sendo os mais centrais: I)  construir possíveis alianças com a sociedade civil europeia para enfrentar questões pelas quais todos partilhamos responsabilidades, como a democracia e as crises ambiental e climática; II) compartilhar com parceiros e apoiadores as narrativas da sociedade civil brasileira em relação à atual situação do governo brasileiro,  introduzindo uma perspectiva da sociedade civil sobre as políticas públicas que estão sendo implementadas; III) discutir a cooperação europeia e o seu papel fundamental no fortalecimento de sociedades democráticas e sustentáveis, ao mesmo tempo que defendem a justiça social.

Temos uma perspectiva de diálogo e incidência política junto a nossos parceiros do continente europeu, pretendendo fortalecer os laços de solidariedade destes com as organizações brasileiras. Apesar das mudanças positivas no nível nacional com o Governo do Presidente Lula, que assumiu em janeiro de 2023, temos desafios e problemas estruturais no Brasil (assim como no restante do Sul Global) que demandam um amplo esforço coletivo, inclusive internacionalmente. Portanto, almejamos sensibilizar as instituições europeias e as organizações do nosso campo para que tenhamos uma agenda conjunta de avanços no sentido de mais justiça social, justiça econômica e justiça climática. E isso passa, dentre outras questões, pela manutenção da cooperação europeia no apoio de projetos das organizações brasileiras.

3) Foi recentemente celebrado um acordo entre Portugal e a Secretaria-Geral Iberoamericana com o objetivo de criar um fundo destinado a financiar projetos de cooperação triangular Portugal – América Latina – África. Que papel pode ter a Sociedade Civil portuguesa e brasileira para garantir que esta iniciativa contribui para o desenvolvimento sustentável?

Recebemos com entusiasmo a iniciativa de criação do Fundo de Cooperação Triangular Portugal -América Latina – África, pois acreditamos que é preciso fortalecer as iniciativas de cooperação para apoiar projetos e ações realizados pelas organizações dos países do Sul Global. Apesar da dotação orçamentária inicial ser considerada pequena diante dos problemas sociais e ambientais enfrentados na América Latina e África (EUR 1.000.000,00 disponibilizados por Portugal), este movimento pode ter um efeito de influência positiva sobre outros países europeus para que também aportem recursos para este ou outros fundos.

De início, avaliamos que a sociedade civil organizada de Portugal e Brasil terão um papel primordial na pressão para que o Fundo seja consolidado e que receba mais recursos no futuro.

Além disso, tem sido uma pauta importante para as organizações brasileiras que se reduzam as burocracias e as intermináveis exigências para que possam ter acesso aos recursos, pois isto cria barreiras intransponíveis para a maior parte das entidades, especialmente as menores que atuam em territórios e comunidades vulneráveis. Para isto, será importante incidir sobre a Secretaria-Geral Ibero-Americana (SEGIB), que fará a gestão do Fundo.

Por fim, uma preocupação que temos se refere aos critérios que serão utilizados para eleição dos projetos a serem apoiados. Uma mirada exclusivamente europeia não condiz com as necessidades das comunidades da América Latina e da África, de forma que as temáticas e condições dos procedimentos concursais deveriam considerar as vozes dos territórios e contar com representantes da sociedade civil.

4) Vivemos um período histórico marcado pela instabilidade global, por conflitos geopolíticos e por ameaças à paz. Qual é a importância da cooperação no contexto atual e como pode a Sociedade Civil contribuir para encontrar soluções pacíficas?

Compreendemos a cooperação internacional, sobretudo, como um vínculo de solidariedade para o estabelecimento da paz e da justiça social nos países. Isto não é possível apenas mediante acordos governamentais, posto que é a sociedade civil organizada a maior garantidora da democracia e da luta por direitos humanos.

Diante do atual contexto, a cooperação está sendo desafiada a se reinventar para que sua ação realmente proteja os bens comuns da humanidade e para permitir que os recursos cheguem de forma mais efetiva a quem mais necessita. O que temos percebido, infelizmente, é que este desafio não vem sendo bem compreendido ou superado. Na maioria dos casos, a atuação da cooperação internacional tem sido fortemente impactada por interesses comerciais, pela política financeira dos países ou por ideologias nacionalistas conservadoras, o que a distancia do seu propósito de solidariedade transfronteiriça.

Cabe às organizações da sociedade civil e aos movimentos sociais denunciar os retrocessos, influenciar para que melhores acordos sejam promovidos e incidir para que as políticas de cooperação cumpram seu papel primordial.